Monday, February 26, 2007

Minha vida traduzida em trechos de poesias e contos...


"Dentro do peito, no entanto; havia ainda aquele ponto brilhante, incandescente, de onde saía uma chuva de pequenas fagulhas. Era quase insuportável. Ela mal tinha coragem de respirar, por medo de atiçar aquele fogo ainda mais; contudo, respirava fundo... fundo. Quase não tinha coragem de olhar-se no espelho frio; mas olhou, e ele mostrou-lhe uma mulher radiante, com lábios trêmulos, sorridentes, grandes olhos escuros e um ar de quem está à espera de que alguma coisa... divina aconteça. Ela sabia que iria acontecer infalivelmente..."

[pequeno trecho extraído do livro "Felicidade e Outros Contos" (Katherine Mansfield) Editora Revan — Rio de Janeiro, 1991, pág. 11, tradução de Julieta Cupertino.]

Tudo é vago e muito vário
meu destino não tem siso,
o que eu quero não tem preço
ter um preço é necessário,
e nada disso é preciso [paulo leminski]

Saturday, February 24, 2007

Amor, vamos discutir a nossa relação?

DISCUTIR A RELAÇÃO é um ato recente. Antigamente, lá pelos anos 60, não se fazia isso. Quando o namorado ou a namorada chegava para o outro e dizia: "Sabe, eu estive pensando...” Pronto, o ouvinte já sabia que era o fim. Não havia mais o que discutir. Saía cada um para o seu lado dizendo que houve (que saudades) uma "incompatibilidade de gênios". Isso resolvia tudo. E os nossos pais jamais discutiram a relação. Nem mesmo a relação sexual. Dava-se uma porrada e não se falava mais naquilo. As mulheres (infelizmente) sabiam do seu lugar ao lado do fogão, sem o fogo do amado.Mas o mundo girou, a lusitana rodou, vieram os psicanalistas e as feministas. Sim, foram eles que instigaram as mulheres a DISCUTIR A RELAÇÃO. Sim, são sempre as mulheres que começam (e acabam) as discussões e as relações. Os terapeutas, porque colocam na cabeça da gente que devemos dizer tudo que pensamos da pessoa amada para ela e não para o melhor amigo. E as feministas, bem, as feministas...Mas, antes de surgir a expressão DISCUTIR A RELAÇÃO, tivemos outros nomes para a mesma desgastante peleja. "Vamos dar um tempo' não durou muito. Depois surgiu "Nossa relação está desgastada". Por que não "gastada"?Hoje, modismo ou não, não há casal que não DISCUTA A RELAÇÃO, pelo menos uma vez por semana, igualando ao número de atividades sexuais. DISCUTE-SE A RELAÇÃO nos mais variados lugares. Alguns sombrios, outros perigosos.O melhor lugar para se discutir a relação é na sala. Está-se próximo do uísque, da televisão que pode ser ligada a qualquer momento e mesmo da porta, para uma saída furtiva e quase sempre covarde. E é ótimo DISCUTIR A RELAÇÃO andando em círculos, com um copo na mão, um ouvido na fera e um olho no futebol. Sim, as mulheres adoram esta atividade aos domingos. Eu tenho um amigo que, quando quer sair sozinho com os amigos, diz: "Vou até lá em casa e dou um jeito de DISCUTIR A RELAÇÃO com a patroa, ela fica irritada e eu tenho um motivo para voltar aqui para o bar'. DISCUTIR A RELAÇÃO no quarto só tem duas saídas. Tudo terminar numa belíssima e lacrimejante cena de amor (às vezes, até com uns tapinhas carinhosos) ou a ida de um dos meliantes para o outro quarto. No quarto, é impossível se tratar deste assunto impunemente. Principalmente se os dois atletas estiverem deitados. E nus. E se houver alguma faca por perto. Vide Robbit.No carro, é um perigo. Deveria haver multa para esses casais que colocam em risco não apenas a vida deles, como também dos transeuntes e demais carros. DISCUTIR A RELAÇÃO dentro do carro sempre acaba em trombada na cara. E quem está dirigindo leva sempre a pior. Ou então propor um rodízio. Segunda, não discutem casais com final 1 e 2. Terça, 3 e 4. E assim por diante.Agora, não há nada mais desagradável do que DISCUTIR A RELAÇÃO por telefone. É um horror. Geralmente é de madrugada. Longos silêncios... "Você está me ouvindo? Você está aí?" A gente não vê os olhos da outra pessoa, o sarcástico sorrisinho, a pequena lágrima rolando. Sem falar na conta do telefone. E no restaurante, vocês já repararam? Sempre tem alguns casais que chegam calados, comem calados e calados saem. Um não dirige a palavra para o outro. Ledo engano. Eles estão, em silêncio, DISCUTINDO A RELAÇÃO. Acho uma covardia DISCUTIR A RELAÇÃO em silêncio. Eles não falam nada. Ela fica quebrando palitos e ele rasgando o guardanapo de papel. Imundando o restaurante.Já os mais modernos DISCUTEM A RELAÇÃO via Internet. Ele digita um disparate para ela na Vila Madalena, o texto vai para um satélite, dali vai para Columbus (Ohio, USA), volta ao satélite, baixa na central do Rio de Janeiro e, finalmente, entra no computador dela em Pinheiros, a uns 500 metros de distância. Depois é a vez dela fazer o mesmo. Coitado do satélite que tem que decifrar aqueles palavrões todos. Em português, é claro!Mas o pior não é DISCUTIR A RELAÇÃO. O pior é pagar fortunas a um profissional, sentar-se numa poltrona ou divã e ficar ali, durante 50 minutos, por intermináveis semanas, meses a fio, anos seguidos, repetindo tintim por tintim como foi a nossa última conversa com o ser amado, fazendo um esforço danado para lembrar fala por fala, todos os diálogos. E o terapeuta lá, com aquele olho de peixe morto, caído, quase bocejando, ouvindo, pela oitava vez, naquela mesma tarde, a mesma nauseante história de amor.Sim, porque com ele a gente não DISCUTE A RELAÇÃO. Discutimos, no máximo, o preço. Da nossa dor.


[Texto extraído do livro “100 crônicas de Mário Prata”, Cartaz Editorial – São Paulo, 1997, pág. 163.]

Tuesday, February 20, 2007

O NASCIMENTO DO PRAZER (trecho)

O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos - pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.

[clarice lispector]

Sunday, February 11, 2007

Uma temporada no Inferno


Jamais pratiquei o mal. Os dias me serão leves, o arrependimento me será poupado. Não terei tido os tormentos da alma quase morta para o bem, na qual ascende a luminosidade severa como a dos círios fúnebres. O destino do filho de família, esquife prematuro coberto de límpidas lágrimas. Sem duvida, a devassidão é estúpida, o vício é idiota; é preciso jogar fora a podridão. Mas o relógio não terá chegado a tocar senão a hora da dor pura! Serei suspenso como uma criança, para brincar no paraíso, esquecido de todas as desgraças! Depressa! existem outras vidas? — O sono entre riquezas é impossível. Só o amor divino outorga as chaves da ciência. Vejo que a natureza não passa de um espetáculo de bondade. Adeus quimeras, idéias, erros.
[arthur rimbaud]

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